31 julho, 2016

R.H

27 anos, formado e sem emprego. Marcio tentara de tudo e já cogitava ultrapassar fronteiras brasileiras pra deixar curriculum quando, voltando de mais uma entrevista frustrada, dá de cara com um anuncio de emprego no poste: “Empresa domiciliar, contratamos homem/mulher, 18 à 100 anos, experiência com supervisão mobiliária, monitoramento setorial e vendas”. Por já ter trabalhado em lugares que exigiam aptidões semelhantes resolveu tentar a sorte.

- Opa, bom dia! Vim por causa do anuncio no jornal.
- Sério? Bom saber que um homem foi o primeiro a se interessar...
- Hã? Como assim?
- Nada, fique tranquilo!
- E onde mais precisamente fica a empresa, a sala de entrevistas?
- Como dizia no anuncio, que creio eu que você tenha visto, trata-se de uma empresa domiciliar, e se você disser que desde já topa, tá contratado.
- Mas eu preciso conhecer o local, ter conhecimento das minhas funções e tal...
- Certo, comecemos aqui pela sala. Verifique dia sim outro não e dê uma varrida no chão debaixo do sofá. Quanto ao tapete, apenas o aspirador de pó. Nada de vassoura! No raque ponha só um pouquinho do Lustra Móveis, é madeira africana. Resistente mas não se dá bem com esses produtos químicos.
- Eu não estou entendendo muito bem...
- Eu pus no anuncio, querido. Lembra? “Supervisão mobiliária”
- Sim, mas eu já trabalhei nessa área e...
- Deixa pra lá, é o de menos. Vamos seguindo. O cachorro só pode fazer as necessidades dele naquele canto, além disso ele não pode entrar no quarto da Ciça, e nem atrapalhar o Meneguiberto das 9 as 12. Ele trabalha muito focado e odeia quando alguém atrapalha.
- Espera, eu vou ter que determinar onde o cachorro tem que fazer cocô?
- Não, o lugar já está determinado. Você tem apenas que monitora-lo e impedir que ele faça em outro local.
- Mas isso mesmo é que não estava no anuncio!
- “Monitoramento setorial”... Você precisa prestar mais atenção no que lê rapaz! Bom, e por último temos o telefone e a Ciça.
- Telefone e a Ciça?
- Sim. Quanto ao telefone, o Meneguiberto é o filho mais velho dos sete. Então toda hora ligam pra ele pra falar de um problema, pra pedir dinheiro ou as vezes só pra pedir um concelho. Quando se tratar de algum problema da família ou só dinheiro mesmo você anota em algum papel, mas quando for um concelho, pode se sentar e bater um papo tranquilo e dê você mesmo. A família dele não morde. A Ciça já é bem diferente, ela grita muito e quando ela gritar quem aparece? Você! Sua mãe cantou pra você dormir quando era bebê? Pois então, tenta lembrar de alguma canção de ninar e põe essa goela pra trabalhar! Quanto a frauda, troque de quatro em quatro horas e a papinha dê de seis em seis. O resto deixe comigo.
- Tá, mas lá não falava em auxiliar administrativo...
- Auxiliar administrativo? Meu filho, acorda! Isso é setor de R.H.
- E quanto a experiência com vendas? Isso não adianta dizer que não tinha porque tinha e foi o que me fez vir!

- Ah sim, eu vendo cosméticos pra ajudar nas despesas. Que dar uma mão?

25 julho, 2016

Original

- Quando não houver ideia, copie!
- Mas nenhuma ideia é completamente ideia, digo, por trás dela há sempre um conjunto de influências, um repertório de coisas que a gente foi vendo e acumulando.
- “Nada se cria, tudo se copia”? Fala sério... Isso é uma falácia!
- Será? acho que não eim! Quer ver? Por exemplo, aquela sua ideia pra campanha da academia de por uma esteira dentro dos elevadores e fazê-los funcionar com a força motriz das passadas foi porque uma semana antes eu te mostrei a campanha da Nike que tirou os assentos de cadeiras públicas e escreveu “Run” nos encostos.
- Sério? Nem percebi...
- E o conceito do game que você criou pro pessoal da esquerda, o tal do Presijump... Por a presidente pra pular e desviar dos pró-impeachment foi um insight magnifico, mas não é nada se não um Flappy Bird político.
- Mas...
- Sem falar naquela outra ideia, genial por sinal, mas nenhum pouco original de criar um conjunto de apartamentos que ao invés de moradas seriam alugados apenas para que as pessoas colocassem coisas que não podiam guardar em casa.
- Essa foi cem por cento própria.
- Será? Uma semana antes você perdeu seu pendrive e eu te recomendei que criasse uma conta no Dropbox.
- Sim, mas eu não tive a...
- A intenção, pois é, nem isso.





23 julho, 2016

Cinco minutos

- Se eu te contar você nem acredita.
- Então conte!
- Ora, se não vai acreditar pra que eu vou contar?
- Mas como você tem tanta certeza disso se ainda não contou.
- Na verdade eu contei sim...
- Ham? Quando? Você acabou de chegar de viagem.
- Isso é tão relativo...
- Porque relativo?
- Te contei tudo em detalhes há uns cinco minutos atrás...
- Como é que é?
- Na verdade, não sei ao certo, mas deve ser a uns cinco minutos à frente. Digo, depois!
- Amor, você está bem?
- Eu estou vindo do futuro, e lá a sua reação para o que eu te conto agora, ou deveria estar te contando, não foi muito boa.
- O.k, partamos do principio de que essa maluquice é real e que você fez uma viagem no tempo. Diga-me, a minha reação foi muito ruim ao ponto de chegar a ser violenta?
- Quase isso... Eu diria que extremamente grosseira!
- Façamos o seguinte então. Eu vou entrar no banheiro, você tranca a porta pelo lado de fora e me conta.
- Certo!
- Trancou?
- Tranquei!
- Pode falar!
- Estou gostando de outra pessoa e quero terminar!

A reação realmente foi diferente dessa vez, nada de violência e histeria. Ouve-se apenas a tremedeira do ventilador.

- Seguinte, tem como fazer essa viagem no tempo de novo?
- Sim, digamos que sim...
- Escuta... Eu juro, eu prometo que vou reavaliar meus conceitos e atitudes, vou fazer acontecer e vai ser tudo diferente. Então que tal se você voltar cinco minutos atrás novamente, fingir que isso não aconteceu e simplesmente não me contar nada?
- Sinto muito, mas não dá, pois acredite, essa foi a sua melhor reação se comparada às outras trinta oito vezes que eu tentei te contar isso hoje. 

18 julho, 2016

Roteiro fechadinho


Lançado fui numa cansativa maratona de filmes em que seus temas, cenas, atores, interpretações e cortes abusavam da tolerância de seus telespectadores e corriam há quilômetros da margem que a tarja de censura lhes amparava. De todos, porém, o filtro que possuo na cachola de alguns frames teve o que tirar.

As informações e imagens foram condensadas num material que serviria mais tarde pra uma piada ou crônica. Quis diferente quem ia escrever e optei por uma ideia pra roteiro cinematográfico. A seguir a introdução.

Fábio namora Julia, e ela o trai com seu professor de Inglês, Jair, que é casado com Virginia, possuindo esta um caso com o colega de trabalho de seu marido e também professor de Português, Alfredo.

Bastou pontuar a introdução e o que escuto do meu ego é “genial, esplendido, extraordinário, inteligente, inventivo, pra deixar de queixo caído fãs de Woody Allen, quiçá o próprio”. E isso, por mais inacreditável que pareça, diverge totalmente de imodéstia ou soberba, porque é comum a aquele que cria achar que inventou algo inimaginável e tão somente originalíssimo no momento em que o conclui.

Mas eis que aparece a agradável e aconchegante procrastinação e desde então muitas vezes adiei revisar. Falei do roteiro pra alguns amigos que se interessaram em ler, não obstante protelei tantas outras vezes entregar. Cheguei até a perder a versão impressa e achei quando, afastando a mesa da cozinha pra limpa-la, esbarrei no pé da geladeira e lá estava ela debaixo. Então parei a faxina e me pus a fazer o que já devia ter feito há muito tempo. Li, reli, procurei erros ortográficos e fui achar justo o que, na êxtase do termino, nem cogitei haver. Frutos da critica honesta, aquela feita pelo próprio criador, eis que surgem os porquês e pra que´s disso e daquilo.

Teria o diretor trabalho, não pus as origens e as motivações por detrás das traições. Mas e pra que as colocaria? E por que falar sobre traições, e por que tantas. Por que ambienta-las no ambiente acadêmico, porque excogitar antagonismo e romantizar um conflito entre um professor de inglês e um de português e porque este é o único homem dessa ficção a não ser traído, a não ter a honra vilipendiada, já que e mesmo se, no final, diretoria, os alunos e os demais funcionários tomam conhecimento de toda a patifaria. E pra que ficam todos sabendo, pra que escancarar algo que apesar de sua natureza indecorosa e despudorada pode fugir a largo da banalidade, se tratada em território particular. Por que e pra que roteirizar temas tão delicados e embaraçosos de modo tão descortês e impolido?

O inconsciente é o pior assessor que um escritor pode ter, uma vez que, se quem lê essa crônica ou chegar a assistir o filme, me conhece, sabe que já fui traído, nunca me dei bem com o inglês, além de odiar a mania estúpida do brasileiro pelo vício por estrangeirismos. Que idolatro a língua da qual me utilizo para sabe-se lá o que, do meu deslumbramento pelo charme de sua versatilidade e que, embora negue de pé junto e dedos cruzados como se assim fosse juramento, minha negação pelo inglês só se dá por não conhece-lo muito bem e continuar a manter distancia. Talvez, só que com um pouquinho de muita certeza, o roteiro do filme fale sobre traição, mas esta crônica é acerca do preconceito.

17 julho, 2016

Crise ortográfica

Nada é tão ruim que não possa piorar um pouquinho mais. A crise que até então afetava apenas o país e a sua economia chegou a Gramática Portuguesa e o setor Ortográfico é o que mais sofre com o pacote de cortes.  Gramáticos, estudiosos professores e escritores protestam nas ruas. Um acordo ortográfico foi selado recentemente, mas nada parece ter colaborado para evitar que se chegasse a tal ponto.

Demitiram o Z e com o seu fonema ficou o S. O principal afetado é o reino animal que perde o único mamífero popular com Z.  O X entrou com recurso pra saber como vai ficar “exato”, mas ninguém soube lhe informar ao certo.  

Interjeições, dígrafos e até mesmo a etimologia das palavras afetadas tiveram que abrir mão do H. “Está ameaçada a erança de nossa língua”, escreveu um gramático em sua página oficial no Facebook.

Irá a voto popular a preferência pelo uso de: “biscoito ou bolacha, J ou G” e a julgamento irão todas as exceções das regras gramaticais, que segundo especialistas (ex-alunos e estudantes) culminaram para as vicissitudes e transtornos sofridos até aqui. Sintaxe e Morfologia não se manifestaram até o momento.

Norma Culta é pressionada por regionalistas e a galera que fala errado mesmo. Estes por sua vez pedem que ela renuncie. Caso contrário será dada a largada para o rito de impeachment.

Com a ameaça de exilio nos E.U.A, o W retornou ao Reino Unido e o U assumiu o cargo. Atarefadíssimo por sinal.

Sobrou até pra cedilha, coitada. E quem quiser que se ponha a adivinhar como ler as palavras agora.


Ah, e só pra alerta-lo, amigo leitor, esta é uma crônica clandestina e só poderá ser lida por leitores bastardos que em tempos de crise e independente da dimensão que ela adentre, continuam a presar pela beleza da estética da Língua Portuguesa.

11 julho, 2016

Veredito

- Seu veredito, Morte?
- Não sei... Hoje eu não tenho um veredito pronto.
- Não acredito no que estou ouvindo. Ah vai, pelos velhos tempos. Ceifa ele e pronto.     
- Ai, você tem andado tão insensível! Olha pro coitado. Tá em coma há meses e os sonhos que vem tendo vão render reflexões extraordinárias sobre a vida caso ele acorde.
- Você podia ter feito o serviço logo, mas não o fez, então é justo que encerre isso o quanto antes.
- Mas ele é tão correto, tão honesto. Não conseguiu sequer completar o leque dos pecados capitais, é um santo! Sem contar que a mulher tá desempregada, ele carrega a família nas costas e o sonho é ver os filhos na faculdade.
- Você acaba de descrever o perfil de milhões de pais de família em coma no mundo. E faça-me o favor, querida. Semana passada você levou um número absurdo de almas ao purgatório sem sequer perguntar o nome.
- Águas passadas! Pense bem, se o nascimento de alguém é um espetáculo estrondoso porque o fim da vida precisa ser tão banal?
- Não se trata de banalidade, minha cara. Esse é, e formulado por Deus, o principio da vida. Tudo que começa termina e se você interpreta agora uma simples existência como um espetáculo puxe os aplausos, mas faça o seu trabalho.
- Não estou me referindo a apenas uma vida. Eu critico a frivolidade do conjunto.
- Ah, então você quer que as pessoas parem de morrer?
- Não! Obvio que não... Mas vê só, esse ai a última coisa que disse aos filhos foi que maneirassem no consumo de energia porque a conta vinha cara, e a mulher que o banhasse por falta de condições para fazê-lo sozinho. Depois desmaiou e tá desacordado até hoje. Sei lá, seria tão bom se todos pudessem ter a chance de se despedirem, e mais, se despedirem do jeito que quisessem.
- Ok, façamos um teste. A gente dá a esse homem a oportunidade de dar adeus à família da maneira que lhe convir e depois tchau!
- Feito.

O anjo e a morte entraram no sonho do homem, fizeram-lhe a proposta e ele aceitou.

- Bom, eu sempre quis seguir a carreira musical, mas as responsabilidades chegaram cedo. Pra me despedir de todos, inclusive dos que poderiam ter sido meus fãs no passado eu quero lançar um disco e fazer uma turnê de seis meses.
- Muito tempo pra quem já devia ter morrido. Disse o anjo
- Três meses de turnê e um para gravar o disco. É tempo suficiente. Complementou a morte.  

Assim combinado e o disco foi gravado um mês depois. O álbum foi ovacionado pela crítica tornando-se um marco na história da música com o rótulo de “Moderno MPB mais contemporâneo que nunca”. A turnê foi um sucesso e conseguiu contemplar todas as capitais brasileiras. No último show, sentados na primeira fila estavam o anjo e um correspondente de Deus incumbido de certificar a Morte, também ali presente, de que naquele dia se daria o último show, o último abraço e finalmente o adeus daquele homem.

E sabendo que seria a última apresentação de sua vida, o artista aceitou os pedidos de “bis”, cantou algumas músicas que não estavam no álbum e distribuiu gratuitamente discos e camisas para toda a plateia. Sem falar que foi um espetáculo, o show foi transmitido ao vivo em várias emissoras de TV e mais tarde virá a ser comercializado em DVD Blu-ray. A Morte desconfortável com o inoportuno poder de efetivar ultimatos que lhe é concedido desde os primórdios, e inconformada por ter que usurpar do cenário artístico o mais novo fenômeno da nossa música, entreolhou os anjos de Deus que lhe cercavam e pôs a mão num ombro dos dois como sinal de uma camaradagem nunca antes vista.

- Gostaram? Eu amei! Que tal se a gente bancasse a discografia?




09 julho, 2016

(I.N.U.C.C) Times To Die, um grito adolescente (?)



All of my friends are getting married
All of my friends are right with God
All of my friends are making money
But art gets what it wants and art gets what it deserves

Como esses versos, talvez atualmente nada reflita de modo tão fidedigno e com tamanha completude, porque cada vez que ouço acabam por contemplar o que me passa despercebido, o exato momento que vivo. Ao meu redor triunfam alguns vitoriosos e progridem outros esforçados ao mesmo tempo em que um esquizoide descenso entre o que faço para aproveitar o presente e o que devo fazer para o futuro que anseio me estagna. Um verso de outra canção soa como gentil conselheira, “e onde a sorte há de te levar, saiba, o caminho é o fim, mais que chegar”. Obrigado Little Joy.  Nas paixões alguns se perdem, outros se encontram, e eu cá me pergunto se devo permitir que me percebam. Já que tamanhos são os medos que a gente inocentemente toma para, ou porque nos fazem sentir, seguros. Ou acomodados? Responda alguém, ou o deus que ultimamente eu tenho acreditado pouco. 

Get a job!
Job lying in bed while all his friends chant
"Youmustadonesomethingwrong"
But he just keeps singing this song

E gritam, “vai trabalhar!”. Hoje, é apenas mais um dia do meu ano sabático. Estou na ânsia pelo lançamento de uma lista de espera da segunda chamada para o curso que sonho ingressar. Letras! “Meu filho pense melhor”, “Mãe, eu quero Letras”. É a preocupação disfarçada de preconceito ou o inverso? Ah, vai ver que é coisa de mãe mesmo. Ou seriam apenas da minha mãe essas coisas? Ela quer um filho bem sucedido, é sempre o que todas querem. Pra falar bem verdade, penso eu o que todas querem é ver, pura e simplesmente, o filho bem, mas o problema está justamente nesse “bem” aí. Ele pode sufocar seus os anseios, ele pode te tornar conformista, ou te estagnar. Pergunte-me, mãe, o que me faz sentir bem. Pergunte-me, mãe, o que eu quero pra mim. 

We’ve all had
Better times to die
We've all seen
Better times

Uma birra adolescente? Uma vontade ingrata de desperdiçar a chance que parece ser apenas uma? É preciso levar as crenças em consideração aqui, no entanto eu levo a vertente circunstancial cética. Um culto saudosista ao pessimismo para arrancar a atenção dos que sorriem dissimuladamente? É conveniente não responder nenhuma dessas perguntas, visto que, ao não condizerem com os questionamentos da canção tampouco podem respondê-los. Times To Die fala sobre o desencontro entre vontades próprias e expectativas alheias, não se trata de uma rejeição as cobranças que nos fazem, e sim, acerca da discrepância nas ambições. Que venham a nos exigir os frutos daquilo que queremos plantar. 






(Nessa espécie de 'tag' eu me esforço pra ser o menos tecnicamente crítico possível com alguns filmes, discos, músicas e livros que marcaram ou simplesmente chamaram a atenção de quem vos escreve)




04 julho, 2016

Sacrifício

Lupe, membro solene da família Bom-Tempo é diagnosticado tarde demais com um mal irreversível e os veterinários recomendam a eutanásia. Todos os parentes, os quais pelo cão tem grande apreço se dividem entre aqueles que são a favor e os que são contra a crucificação.

Mesa redonda, argumentos na ponta da língua, cartas na manga, muito chororô e até os que são a favor lá no fundo de suas almas são contra. Tia Cecília, a mais religiosa, relembra a todos da crucificação de cristo e o quanto que sofreu na cruz por nós pecadores, mas nada argumenta sobre a situação do animal porque “Não vou nem me meter, mas sendo contra o aborto, também sou contra toda e qualquer ação que tenha o objetivo de retirar a vida de alguém”. Enquanto isso as crianças se afogam em lágrimas, os adolescentes principalmente. George o primo mais velho, por exemplo, menciona que foi basicamente, e por culpa da mãe, criado pelo cachorro, “quantas vezes eu não cai do berço graças ao Lupe, e quantas vezes me fez companhia enquanto a mãe não estava. Ele não merece tanto sofrimento, sou a favor...”. Os homens da casa, sisudos, padecem por dentro, mas não falam muito porque fingem refletir a procura de uma solução. Seu Rogério, o avô, recorda que por 16 anos a casa foi como uma fortaleza graças à coragem e astúcia do pastor alemão, “ladrão tem a planta inteirinha do céu, mas dessa casa aqui até hoje só viu a faixada. Não sei nem o que dizer e acho melhor nem saber de nada porque assim nada eu digo... Vou é preparar uma boa dose de whisky!”. Adele, a cadela que deu a Lupe seis filhotes e muito trabalho a quem teve que cuidar, foi trazida pelo dono e no canto da casa se escorou. Não queria ver o cachorro da sua vida naquele estado. Apesar disso não uivou e só duas latidas deu. Segundo Marta, a caçula da família e tradutora de cães, Adele preferia que fosse o animal poupado da dor, “um de nós teria que ir primeiro mesmo...”.

A Lupe incomodava mais aquela comoção geral e todo o lengalenga pra decidir que rumo tomaria sua vida que as agonias e torturas causadas pela doença. Não era um cão lá muito sentimental e inclusive, certa vez a Adele, confessou desejar ser cremado. Marta nunca ficou sabendo, logo, a família também desconhecia tal escolha.

Os veterinários estavam agoniados. Era sexta feira, e um deles já estava atrasado para o happy hour com os amigos. Percebendo o cão, o incomodo que causava começou a relembrar os tempos em que era treinado por seu Rogério. A brincadeira que mais gostava era a de se fingir de morto, pois a recompensa era a maior. Dois biscoitos de maisena.  Fez um esforço pra atiçar a memória do paladar, fechou os olhos e simulando a morte esperou-a chegar. 


02 julho, 2016

Senha

Exatamente as 11:05 da manhã o Agente Cospicov liga para um restaurante japonês e reserva mesa para seis.

Pontualmente as 22:00 Agente Bastos chega ao restaurante. As 22:10 adentra nas dependências do estabelecimento.

As 22:20 Agente Peet, que escondido estava num canto da área de serviço desde o dia anterior, abandona os panos de chão e as vassouras que lhe camuflavam e dirige-se em direção a mesa.

As 22:30 Agente Yang e Tamashiro saltam de paraquedas no estacionamento do centro comercial ao lado enquanto Agente Thempsem retira o avental de cozinheiro que lhe servira de disfarce, deixa a panela que manejava no fogo e parte rumo ao encontro dos demais.

- A razão desta reunião é do conhecimento de todos, ainda que apenas a um a pergunta sirva, o testemunho dos restantes é de suma importância. Agente Thempsem, escreva no guardanapo os números da combinação.
- Números da combinação?
- Sim! Me refiro a senha que recuperamos.
- Ah sim, eu não tive acesso a ela não. Quem viu e sabe é o Agente Peet.
- Eu? Confesso que até guardei a caixa por algumas horas, mas foi só até o Agente Bastos tomar da minha mão. Pergunte a ele ó!
- Agente Bastos?
- Nem vem comandante, o senhor me disse que era super-híper-mega, e todos os outros adjetivos de conotação parecida, secreto. Depois disso eu fui baleado, fiquei desacordado e quando enfim acordei me disseram que a caixa com a senha estava a salvo porque os agentes Yang e Tamashiro tinham a recuperado das mãos inimigas.
- Agentes Yang e Tamashiro?
- A gente?
- Tira a gente disso. Não temos combinação nenhuma. E pra falar verdade nós só viemos porque disseram que ia ter comida típica.
- Então afinal de contas quem tem a senha?!
- Ah, vai ver que só o cronista.