- Seu veredito, Morte?
- Não sei... Hoje eu não tenho um
veredito pronto.
- Não acredito no que estou ouvindo. Ah
vai, pelos velhos tempos. Ceifa ele e pronto.
- Ai, você tem andado tão insensível! Olha
pro coitado. Tá em coma há meses e os sonhos que vem tendo vão render reflexões
extraordinárias sobre a vida caso ele acorde.
- Você podia ter feito o serviço logo,
mas não o fez, então é justo que encerre isso o quanto antes.
- Mas ele é tão correto, tão honesto.
Não conseguiu sequer completar o leque dos pecados capitais, é um santo! Sem
contar que a mulher tá desempregada, ele carrega a família nas costas e o sonho
é ver os filhos na faculdade.
- Você acaba de descrever o perfil de
milhões de pais de família em coma no mundo. E faça-me o favor, querida. Semana
passada você levou um número absurdo de almas ao purgatório sem sequer
perguntar o nome.
- Águas passadas! Pense bem, se o
nascimento de alguém é um espetáculo estrondoso porque o fim da vida precisa
ser tão banal?
- Não se trata de banalidade, minha
cara. Esse é, e formulado por Deus, o principio da vida. Tudo que começa
termina e se você interpreta agora uma simples existência como um espetáculo puxe os aplausos, mas faça o seu trabalho.
- Não estou me referindo a apenas uma
vida. Eu critico a frivolidade do conjunto.
- Ah, então você quer que as pessoas
parem de morrer?
- Não! Obvio que não... Mas vê só, esse
ai a última coisa que disse aos filhos foi que maneirassem no consumo de
energia porque a conta vinha cara, e a mulher que o banhasse por falta de
condições para fazê-lo sozinho. Depois desmaiou e tá desacordado até hoje. Sei lá, seria tão bom se todos pudessem ter a chance de se despedirem, e mais, se
despedirem do jeito que quisessem.
- Ok, façamos um teste. A gente dá a
esse homem a oportunidade de dar adeus à família da maneira que lhe convir e
depois tchau!
- Feito.
O anjo e a morte entraram no sonho do
homem, fizeram-lhe a proposta e ele aceitou.
- Bom, eu sempre quis seguir a carreira
musical, mas as responsabilidades chegaram cedo. Pra me despedir de todos,
inclusive dos que poderiam ter sido meus fãs no passado eu quero lançar um
disco e fazer uma turnê de seis meses.
- Muito tempo pra quem já devia ter
morrido. Disse o anjo
- Três meses de turnê e um para gravar o
disco. É tempo suficiente. Complementou a morte.
Assim combinado e o disco foi gravado um
mês depois. O álbum foi ovacionado pela crítica tornando-se um marco na
história da música com o rótulo de “Moderno MPB mais contemporâneo que nunca”. A
turnê foi um sucesso e conseguiu contemplar todas as capitais brasileiras. No
último show, sentados na primeira fila estavam o anjo e um correspondente de
Deus incumbido de certificar a Morte, também ali presente, de que naquele dia se
daria o último show, o último abraço e finalmente o adeus daquele homem.
E sabendo que seria a última
apresentação de sua vida, o artista aceitou os pedidos de “bis”, cantou algumas
músicas que não estavam no álbum e distribuiu gratuitamente discos e camisas para
toda a plateia. Sem falar que foi um espetáculo, o show foi transmitido ao vivo
em várias emissoras de TV e mais tarde virá a ser comercializado em DVD
Blu-ray. A Morte desconfortável com o inoportuno poder de efetivar ultimatos
que lhe é concedido desde os primórdios, e inconformada por ter que usurpar do
cenário artístico o mais novo fenômeno da nossa música, entreolhou os anjos de
Deus que lhe cercavam e pôs a mão num ombro dos dois como sinal de uma camaradagem
nunca antes vista.
- Gostaram? Eu amei! Que tal se a gente
bancasse a discografia?