11 julho, 2016

Veredito

- Seu veredito, Morte?
- Não sei... Hoje eu não tenho um veredito pronto.
- Não acredito no que estou ouvindo. Ah vai, pelos velhos tempos. Ceifa ele e pronto.     
- Ai, você tem andado tão insensível! Olha pro coitado. Tá em coma há meses e os sonhos que vem tendo vão render reflexões extraordinárias sobre a vida caso ele acorde.
- Você podia ter feito o serviço logo, mas não o fez, então é justo que encerre isso o quanto antes.
- Mas ele é tão correto, tão honesto. Não conseguiu sequer completar o leque dos pecados capitais, é um santo! Sem contar que a mulher tá desempregada, ele carrega a família nas costas e o sonho é ver os filhos na faculdade.
- Você acaba de descrever o perfil de milhões de pais de família em coma no mundo. E faça-me o favor, querida. Semana passada você levou um número absurdo de almas ao purgatório sem sequer perguntar o nome.
- Águas passadas! Pense bem, se o nascimento de alguém é um espetáculo estrondoso porque o fim da vida precisa ser tão banal?
- Não se trata de banalidade, minha cara. Esse é, e formulado por Deus, o principio da vida. Tudo que começa termina e se você interpreta agora uma simples existência como um espetáculo puxe os aplausos, mas faça o seu trabalho.
- Não estou me referindo a apenas uma vida. Eu critico a frivolidade do conjunto.
- Ah, então você quer que as pessoas parem de morrer?
- Não! Obvio que não... Mas vê só, esse ai a última coisa que disse aos filhos foi que maneirassem no consumo de energia porque a conta vinha cara, e a mulher que o banhasse por falta de condições para fazê-lo sozinho. Depois desmaiou e tá desacordado até hoje. Sei lá, seria tão bom se todos pudessem ter a chance de se despedirem, e mais, se despedirem do jeito que quisessem.
- Ok, façamos um teste. A gente dá a esse homem a oportunidade de dar adeus à família da maneira que lhe convir e depois tchau!
- Feito.

O anjo e a morte entraram no sonho do homem, fizeram-lhe a proposta e ele aceitou.

- Bom, eu sempre quis seguir a carreira musical, mas as responsabilidades chegaram cedo. Pra me despedir de todos, inclusive dos que poderiam ter sido meus fãs no passado eu quero lançar um disco e fazer uma turnê de seis meses.
- Muito tempo pra quem já devia ter morrido. Disse o anjo
- Três meses de turnê e um para gravar o disco. É tempo suficiente. Complementou a morte.  

Assim combinado e o disco foi gravado um mês depois. O álbum foi ovacionado pela crítica tornando-se um marco na história da música com o rótulo de “Moderno MPB mais contemporâneo que nunca”. A turnê foi um sucesso e conseguiu contemplar todas as capitais brasileiras. No último show, sentados na primeira fila estavam o anjo e um correspondente de Deus incumbido de certificar a Morte, também ali presente, de que naquele dia se daria o último show, o último abraço e finalmente o adeus daquele homem.

E sabendo que seria a última apresentação de sua vida, o artista aceitou os pedidos de “bis”, cantou algumas músicas que não estavam no álbum e distribuiu gratuitamente discos e camisas para toda a plateia. Sem falar que foi um espetáculo, o show foi transmitido ao vivo em várias emissoras de TV e mais tarde virá a ser comercializado em DVD Blu-ray. A Morte desconfortável com o inoportuno poder de efetivar ultimatos que lhe é concedido desde os primórdios, e inconformada por ter que usurpar do cenário artístico o mais novo fenômeno da nossa música, entreolhou os anjos de Deus que lhe cercavam e pôs a mão num ombro dos dois como sinal de uma camaradagem nunca antes vista.

- Gostaram? Eu amei! Que tal se a gente bancasse a discografia?