17 outubro, 2015

O carteiro



Após duas “boas tardes” dissimuladas e tremendamente inexpressivas vieram as principais manchetes do dia: Um uso polar é supostamente visto rondando pelas ruas da cidade e três golfinhos estupradores estão foragidos da polícia. Dois motoristas daltônicos fazem confusão com as cores do semáforo, colidem-se brutalmente e de sobra convertem em retângulo o quadro de uma bicicleta que transitava por ali ao comando de morosas pedaladas. Um dia comum.

Ouço a campainha.

Modelado com a maestria de um barbeiro português o bigode do carteiro gordinho realçava o sorriso de satisfação pela entrega da última correspondência.

- Encomenda pro senhor!... Mas antes só preciso que assine aqui ao lado do “x”.

1. Não lembro se alguma vez na vida recebi uma encomenda. 2.  Pensava que carteiros entregavam o que quer fosse apenas na hora do almoço. 3. Por isso tinha total certeza de que eles só tomavam café da manhã e jantavam.
                                             
A caixa era gigantesca e somente não cogitei haver uma TV de 42 polegadas lá dentro porque o próprio conteúdo não fazia jus ao tamanho de sua embalagem e obviamente não havia ninguém no meu ciclo de zé ninguéns com vontade e dinheiro para me presentear com uma TV de 42 polegadas.

Por isso mesmo era uma lâmpada. Oh claro, uma lâmpada.

Logo assim de primeira encarei como piada e ri durante bem uns cinco minutos, mas as gargalhadas cessaram e me veio à cabeça que poderia o bigodudo ter confundido o endereço ou o nome do destinatário, pois meu vizinho tinha o mesmo nome que o meu. Abri a porta pra ver se o carteiro ainda fazia alguma entrega, o que era impossível já que o meu apartamento era o último, além do que, demorei um tempão balançado a caixa feito um pateta tentando adivinhar o que tinha.

Comumente apelo para a saída mais viável, a solução mais fácil, o recurso aparentemente disponível. Decisões imprudentemente tomadas com cautela são atos de coragem. Esfreguei a lâmpada.
                                                        
A campainha toca mais uma vez.

- Eu de novo. E sim, pois é, não sou carteiro, sou um gênio.
- Puts, mas não tinha que sair da lâmpada?!
- Século vinte e um, dois filhos pra criar, um bigode pra aparar e cento e dois quilos, o que dificulta um pouco emergir por um raio de aproximadamente, deixa eu ver... três centímetros. Então sem cerimonialismo, o senhor tem direito a dois pedidos mas se já for cliente da casa ou tiver indicado os nossos serviços a um amigo, tem direito a mais um.
- Então ok, lá vai. Anota o primeiro...
- Não preciso anotar, vai ser rapidíssimo, tô conectado por Wifi a alguma internet de dez megas.
- Ham?! Enfim. O primeiro é, queria ter nascido rico. E o segundo é, me leve para vinte anos depois desse aqui aonde eu vou supostamente estar bem mais rico do que já sou.

Bang! O tempo se contorce e zeros de uma conta bancária se expandem. Bang! E Essa é uma onomatopeia extremamente esquisita para descrever um processo de realização de desejos! Bang! Waldick Soriano gostava de dizer que um tem que perder para que outro entre no jogo e bang!... para que os pais do nosso personagem terem também nascido ricos algumas multinacionais bilionárias nem chegaram a existir, por tanto este período da narração não poderá mais ser lido no futuro e nem no passado... Bang! Estamos neste instante que provavelmente já se passou voltando alguns anos para um ano qualquer... E mais bang! Todo um pretérito de riquezas já foi fabricado, o que significa afirmar que um ser de orifício apontado para a lua já foi parido! E bang! Peguem suas coisas porque dentro de alguns minutos partiremos para a estação Futura. Futura liga você ao futuro! E Bang para o merchandising! E Bang Bang Bang! Chegamos. Sai da narração Douglas Adams e retorna o narrador que não devia ocupar o lugar do Adams!

Espera espera espera, como assim? Olha pra mim, que roupa é essa toda rasgada? Eu estou todo sujo, fedorento, barbudo, cabeludo, não tenho sequer uma carteira no bolso. Estou com cara de pobre, estou pobre, EU SOU POBRE! O que é isso seu gênio de araque?

- O tempo é relativo e as circunstancias mais ainda. Você me pediu o que qualquer ser comodista pede: riqueza, conforto, e um futuro sem preocupações pra chamar de casa. Viajamos por esferas de possibilidades que você poderia muito bem ter explorado, agarrado, analisado. Além disso, poderia ter aproveitado o seu segundo pedido para solicitar que durante todo esse tempo mecanismos trabalhassem administrando todo o dinheiro através dos meios disponíveis, fossem: agiotagem, venda de apólices subprime antes que culminasse a crise de 2008, aquisição de contratos superfaturados da Petrobras ou exigir participação na privataria tucana. Porém se conformou em passar todo esse tempo viajando. No mundo da lua, no mundo do conformismo. Então por isso mesmo, sei lá, Conforme-se.     


10 outubro, 2015

Repentinamente


Deu em Joana a vontade de se amar. De se entregar as possibilidades, de perpetuar o seu cheiro no colarinho e também na lembrança dos homens, de tornar-se alvo dos comentários. Tornar-se o comentário. O assunto.

Falassem bem, falassem mal, mas que falassem.

Quis tornar dever o seu direito de ser livre.

E assim se fez. E assim foi.

Viu de tudo, parou pouco. Fez jornada pelo mundo e não quis dar-se ao luxo de se identificar com os lugares ou neles se estabelecer. A caminhada era em prol da descoberta, não da fixação.

E quanto mais andava mais se desprendia do passado. Fragmentavam-se todos os sentimentos de ódio, rancor e saudade e estes iam transformando-se em uma espécie de poeira, que com o tempo já não era mais poeira.

Que com o tempo já não era mais simplesmente nada.

E tudo isso por que assim de repente deu em Joana a vontade de se amar.


03 outubro, 2015

Fotografias ou retratos

Num mundo que pode ser lido você com certeza estará preso entre parênteses.

Já se passaram algumas primaveras sem folhas desde que retirei da parede da sala na casinha de campo ao lado daquele mega centro comercial todos os nossos retratos, mas não tive coragem de me desfazer dos outros guardados na gaveta da mesinha torta de canto depois de tê-los retirado da parede. A verdade é que nessa casa eu só tenho cacarecos e ai vão trocentos broches de ágata que colecionava, louças empoeiradas, móveis em desuso que pra ser sincera nem mesmo usei- eram da minha vó- acordeões e violas do meu pai e mais uma orquestra de velharias metálicas que vivem esperando um passo em falso meu para entoarem pavonadas estrondosas.

Partido em pedaços uma vez o coração pode ser partido tantas outras e cada amor que passa vai levando o seu.

Sim, a saber, da primavera sem folhas já ia me esquecendo de contar que dei uma repaginada naquele nosso jardim que de última hora consegui lhe convencer a não cultivar rosas em razão desse nosso clima tão inferno brasileiro, se bem que, insisti tanto para irmos morar na argentina mas esse futebol lhe roeu os miolos. Gritei as mil diagonais do mundo que não tenho nada contra argentinos!

As lágrimas degradaram o degradê que distinguia os dias comedidamente bons dos dias pavorosamente apáticos.   

Quando sua mãe ria ao me contar de suas malcriações de criancinha mimada que ela resoluta negava ter mimado eu me divertia e ria, afinal, eram somente malcriações de criancinha mimada e jamais imaginei que você as levaria para a fase adulta ao ponto de fazer birra quando mencionei a possibilidade de morarmos na argentina, mas tudo bem você já se foi e o peso argentino só achou de nos ser favorável agora, que por falar em peso, olha que carrega minha consciência algumas toneladas de arrependimento porque eu era moça de família rica e meu pai não era de cultura patriarcal machista. Poderia ter ido sozinha. Viveria num lugar em que se pode cultivar rosas e que nem todo mundo é fã do Pelé, ora e veja...

- Vó. Ei! Chá?


Não sou como as mocinhas delicadas que tomavam chá a tardinha, aliás eu já sou velha e gosto mesmo é de um café preto.