26 setembro, 2015

O banco e o tempo


- Já são duas horas!!!
- Calmaaaa! Não estamos mais no horário de verão, ainda tenho mais duas!
- Não esqueça que isso aqui é São Luís e até na calçada, se duvidar, tem engarrafamento.

Antônio se apressa em colocar as meias, mas agora só faltam cueca, calça –e aperta-la com o cinto, camisa, algumas borrifadas de perfume, beijo na bochecha e o cheiro no cangote da caçula, e talvez de sua mulher.  “Estou esquecendo de alguma coisa”. Entra no carro. “Ah sim, os sapatos”. Retorna, passa pela esposa que o reprime com um olhar endiabrado. “Eu avisei”. Põe o calçado e volta na esperança de receber, em recompensa pelo esforço, olhos mais fraternais e amistosos, mas a sala está vazia. Entra no carro, introduz a chave na ignição e dá partida. Porém opa! Alguém aparece na janela.

- Tchau paaaiiiii!
...

“E se eu tivesse sido um pouco mais esperto teria pedido a Leila que se concentrasse com um pouquinho de convicção e fé e me desse seis números. Tenho certeza que levaria o acumulado da Mega-Sena”.

Porque justamente na Tribuzi acharam de iniciar uma guerra. Centrais sindicais dos motoristas de taxis e de ônibus resolveram conflagrar entre si uma batalha épica que mais tarde entraria para os livros de história tornando-se também um dos principais temas abordados no vestibular da UEMA. Ocorreu que, logo pela manhã um ônibus da frota municipal colidiu violentamente com a traseira de um taxi e este com o impulso bateu de leve no taxi da frente. “Quem bate atrás é sempre o culpado” alegaram os taxistas.  Possuiriam razão não fosse o fato de que ambas as classes e seus respectivos membros pertencem a um proletariado em que, “independente da empresa a qual somos empregados” ou “o seguro que nos ampara”, o motorista é no final sempre o contemplado com o prejuízo. Sei que, se houvesse um sindicado dos mecânicos, ele passaria a ter recursos suficientes para montar uma frota de oficinas. “Pois é sio, justamente na Tribuzi acharam de iniciar uma guerra!”... Que não teve um vencedor, mas sim, centenas de perdedores. Saldo final do conflito: (negativo) engarrafamento quilométrico.
    
“Está mais do que na hora de algum padre de tempos remotos que muito provavelmente se locomovia pra onde quer que fosse a charretes ser canonizado santo do transito. Precisamos Deus de alguém, e setor, que interceda por nós. Amém”.

Oração ouvida, analisada, despachada, aprovada e atendida com sucesso! Trafego livre!

E mais ou menos as três e meia o pai de família finalmente chega ao banco. “Ainda tô no limite do tempo”. Estaciona o veículo e segue a passos ligeiros em direção à porta giratória que dá acesso a agencia bancaria. “Ei, psiu!”. Chama moço que há instantes atrás cochilava dentro da guarita do estacionamento, mas que agora já tem mãos com um rasgo de papel que devia ser o ticket. Rabiscado estavam horário da chegada e placa do carro. As três e trinta e quatro do dia oito de agosto de dois mil e quinze um pai de duas filhas e marido de uma mulher jovem e saudável irrompe de maneira triunfal, apesar da camisa totalmente amassada e dois botões desabotoados, as instalações daquela sucursal.

Caras fechadas, umas atrás das outras. Braços cruzados, uns atrás dos outros. Pés inconformados que batem inquietos no chão orquestrando mais inquietação. (Uns atrás dos outros). Fila! Mas não qualquer fila, talvez porque quaisquer filas por ai não tomem contornos tão atípicos quanto os que se expandem enfastiosos e numa perspectiva tão atemporal. A fila do banco é uma experiência atemporal e Antônio é o último. Azar? Não! Falta de preparo. Na frente uma senhora de idade e alguns centímetros.

- Por que a senhora não pega a preferencial?

Em resposta vira sutilmente o pescoço. A preferencial era duas vezes maior. As atendentes dos caixas já nem escondiam o semblante arrufo e cansado, sustentado por rugas e harmonizado por duas olheiras, a saber, que mais pareciam calos de sangue.

Antônio olha pela vidraça que começa a perder o tom de azul ocasionado pela luz de um sol que devia ser o das quatro horas. “Como assim, não faz três minutos que cheguei”.  Próximo! Um sortudo é atendido enquanto nas mãos de um rapaz com naipe de estagiário a ser o penúltimo um opulento bolo de contas a pagar. Bolo imenso esse... Não duvido nada estarem ali as dividas externas de Estados unidos, Reino Unido e França. Um inconveniente abonado que vem para sacar uma quantia além do permitido em caixas eletrônicos é seguido de um senhor que veio para quitar suas contas de energia, água, faturas dos mais variados cartões de crédito e um carnê de meses atrasados. Próximo! E mais triste do que feliz por ser sua vez uma moça recém-demitida para retirar de sua conta certa importância do montante relativo à rescisão de contrato –e ai vão decimo terceiro, F.G.T.S e mais algumas migalhas em carapuça de direitos. No implexo enfileirado burguês vai também um cidadão destrambelhado que atrasou algumas despesas e os juros são fieis a este banco. Mas por que logo nessa agência, jovem?... Anda a tal fila, mas parece controlada por uma inflexão regida por lesmas, bichos-preguiça e caracóis, assim também como percorrem o tempo futuros que antecedem seus correspondentes.

Depois de séculos transcorridos num invólucro de meia hora chega a vez de nosso personagem confirmar a assiduidade de sua pontualidade financeira. Vão cédulas pela brecha semicircular de cento e oitenta graus e a autenticidade do ato vem em sua mão numa notinha fiscal de papel ordinário.

19 setembro, 2015

O poliglota


As mensagens vinham geralmente em três idiomas. “I love you”, “je te a’ime”, “ich liebe dich”. Confesso, o camarada tomou-a de mim com afinco. Enquanto eu a beijava com apenas uma língua ele possuía três.

Só não vejo por onde irrompeu o desalinho a fomentar o desmanche das estruturas. Do serviço só chego tarde as terças e quintas, truco e pôquer duas vezes ao mês, futebol e cerveja, samba não, em sábados alternados. E quando me veio com “quero me mudar desse bairro” ultimei com “nos mudamos amanhã”. Comprei uma casa de dois pavimentos, quartos que não dá pra se contar nos dedos e uma cozinha continental já que a americana não era de seu gosto. Mas já bem antes disso, levei a arquitetos renomados, designers célebres, lojas de departamentos de nicho oneroso, mas a mulher bateu na mesa e disse que só aceitaria viver numa morada empavesada nas cerâmicas de Christopher Dresser, desatravancada pelas maçanetas de Guimard e com um segundo andar que só deveria ser acessado se através da escada das grades de linhas curvas do Victor Horta. Quis mais: uma sauna com a porta dupla de vidro do Mackintosh e para pontuar uma lista pra lá de procaz, obsecrou para galantear um comezinho criado mudo à primeira edição de A Bela e a Fera ilustrada pelo Walter Crane. Por fim quando questionei se queria fazer de nosso lar um monumento Nouveau, a energúmena estampou na cara o asco e torceu os lábios respondendo “É Floreale, Stile Floreale, imbecil!”... Enquanto o outro morava num flete que se via mal um quarto e na cozinha, de tão minúscula que era, os dois tinham que se revezar no que podem ser descritos como pseudo-metros-quadrados.

Mas que adentrem na revelação dos fatos todavias e entretantos porque é ao tentar conceituar tudo que certas coisas perdem o significado. A casa que comprei era no centro da cidade. Abafada, calorenta, não corria formiga, mosca, barata e nem vento. Um inferno na terra. O flete do dito cujo era de frente pra orla marítima. O vento das cinco era mais refrescante que água de coco.

E antes mesmo do fim consumado, que ainda não totalmente digerido. Fui do horizonte a mais acolá...  Abdiquei do orgulho depois de muito insistir pela minha aceitação e adesão ao mundéu fútil e oco das redes sociais e assim querendo amenizar o estar e o estará das circunstancias criei conta em Facebook, Instagram, Snapchat e o escambau. Precisava mais! Necessária era uma demonstração de deleite as ferramentas de marocar vida alheia. Tomei a iniciativa! Apanhei uma foto que amigos da faculdade tiraram de um beijo nosso e num ato intertextual republiquei a tal fotografia. Não satisfez nem saldou, não desagravou nem remediou, não conteve nem rejubilou, não compôs e nem recompôs. Disse que esperava pela ressureição de Klimt e Rodin, pois queria ter um beijo seu pintado ou esculpido.


Almejava zarpar? Evaporar-se! Evacuar-se... Mas não queria sair mal falada. E logo de fininho para seguir o roteiro clichê-aventura de tabela? Jamais. Alzheimer veio visitar mamãe e a esposa se fez de boa anfitriã. “Como posso viver numa casa em que sua mãe desconhece a mulher que você escolheu para ser a mãe dos seus filhos? Adeus.”

12 setembro, 2015

Devaneio de gaivota

É porque sim, a peripécia noturna, veste do inconsciente, o que nos deixa tricotar fábulas inéditas numa ficção nossa de cada noite. Estirar-se num colchão duro feito pão dormido e acordar sobre nuvens que se fazem ser notadas com o mesmo arbítrio que recorrem para não ser sentidas. É o estofado dos anjos ou tapete de Deus?

E então eu sou gaivota. Não.. Mais! Porque não basta uma. Sou a consciência-mãe-piloto entrajada de motor nas asas desse modesto bando de pássaros integrando ao que mais parece uma quadriga romana destinada a cortar o frontispício do mundo.

Esquivando-se dos bandos fofoqueiros: disseram pro urubu que a gente é carniça e que o falcão se acha caça supersônico estadunidense. Minha vó diria que língua não tem osso mesmo... Calma pessoal! O céu não é uma vidraça e não estamos de passagem, tampouco viagem que se diz migração. Afinal esse vazio azul é um só e todos temos por direito uma fração cerúlea. Sem contar o horário... A tarde é morna porque o sol pede descanso já que o verão foi longo. Culpado: o tempo que rebolava dando a entender, mesmo em terreno temperado, que as três outras estações dançaram.

Gabando-se do apanágio aerodinâmico mesmo que não nos pertencesse à supremacia legada aos outros seres bem mais do alto que nós. Já os Galliformes morrem de inveja, mas ninguém tem culpa se suas asas pra nada servem a não ser se bem temperadas num assado de panela.

“Encarem as correntes de ar como uma extensa avenida desenhada para eternizar-se vertical”. Um concelho lacônico, porém tão bobo e simplista. Queríamos as curvas. Fazê-las para alguém fotografar com lentes Zeiss. Então veio a primeira.

O linguarudo do falcão nos foi útil falando demais. “Meu voo é perfeito graças às asas curtas”. E calou-se o vento só por uns instantes enquanto nos concentrávamos em reter o seguimento maior deixando assim só as pontinhas para que um por um penetrasse na perpendicularidade dos ares ou no que, dependendo de nós, poderia ser só abismo, mas na pior das hipóteses, impiedosa voragem. Velocidade! Se trezentos por hora são ostensividade e soberba para uma gaivota, biturbos de mil duzentas e sessenta e uma cilindradas são enxurradas de desperdício para seres que nem sabem voar. Triunfo da façanha! De volta ao cume e mais alguns metros acima para estender as asas e entender as dimensões, só então, comparar outros seres e outras coisas a grãos do que quer que seja. Acusar também, a esfera terrestre de ser uma gaiola grande demais para salvaguardar a pequenez do humano que se recolhe em seu antro de ganancia e ambições fúteis encolhendo o produto da inteligência divina. Ou extraordinário acaso. Portanto, gaiola paradoxal.

E na contramão do voo nosso vem à gravidade. Não que nos impeça de voar, nem se quer precisamos manter os pés no chão, mas não nos concede a perpetuidade do voo. Se bem que, parece faltar pincel ou tinta para continuar pintando o sonho. Não, a verdade está na memória. Cochicha ranzinza que não irá guardar nada dessa aventura pra depois mesmo e se põe a tergiversar as crias da madrugada. Por onde estão as outras gaivotas? São operários subalternos aos criados dos neurônios. Melhor, figurantes para noite próxima. Podem, quem sabe, noutrora vestir-se de pelicanos ou albatrozes.


Calma... Acorde, vá no café com pão, mastigue as tarefas diárias e troque a almofada, insufle-se do ar fresco do parque às cinco, tome três chopes antes das dez e depois voe, caminhe, corra, andeje, flutue, deslize à caminho de casa e venha pairar aqui nessa cama. 

10 setembro, 2015

Aparelho mnemônico


Não se chega a melhor idade por acaso. Nem devagar nem de pressa, ainda que carregue comigo a convicção que fidúcia e insuspeitadamente sustentava meu avô de que tempo não passa tempo voa. Para se chegar a este ponto carregado de tantos outros pontos que tiveram lá a sua chance de serem os finais, o senhor deus dos homens e das circunstancias nos contempla com um aparelho mnemônico e o que dar a entender é que cabe ao velho uma única incumbência: recordar. Os amigos já não perguntam se estou bem, e sim se lembro dos dias em que estive melhor. Não que me seja penoso este dever, mas é que no desalinho do conglomerado de memórias correm enlaçadas devido à má administração e falta de logística dos neurônios as boas e as ruins, aquelas que ansiamos exonerar e as que sonhamos reviver, viver mais uma vez ou duas, viver de novo, qual expressão melhor se adéqua a contemporaneidade de vocês? Acordo cedo, mais precisamente às quatro da manhã. Nos anos mais distantes destes quando servia o exercito passava o resto do dia com a cara mais tinhosa que se pode imaginar porque tão cedo quanto hoje eu deveria estar de pé, e por falar em exercito e graças à bagagem de traquejos que carrego posso lhes afirmar que o reproche da ditadura não chegou nem perto do domínio tétrico de meu pai sobre mim e meus irmãos, sem falar que tinha lá nosso patriarca motivos genuínos e não precisou de amigo americano para lhe ensinar a nos educar. Quando criança recebia vez antes da vida outra depois da morte visitas dos amigos médicos de meu pai, mas eu era menino sadio e uma febrezinha era o que de mais riscoso me atingia. Agora são amigos meus tais outros médicos dada à regularidade com que vou visitá-los. Parem de reclamar dos aclames que faço ao passado! Se querem se ver livres da minha ladainha tomem como exemplo Alá que extirpava dos loucos o juízo para que não pecassem e arranquem de mim as lembranças para que eu não as reprise... Já não me permitem nem recorrer as minhas doses diárias do saudoso Chivas dezoito anos e isso me traz a imagem das gerações de beberrões das quais grande maioria fui assíduo comparte. Quando garoto vi em meus tios a representação da prole dos que bebiam porque simplesmente gostavam, o tempo passou e vieram os que bebiam pela compensação psicoativa do álcool para suas mentes carregadas de perturbações e contratempos. E estes foram sucedidos pelos que se embriagam em nome da bandeira da virilidade, o tal orgulho hétero que cai bem melhor dito altivez da imbecilidade. Já não sou uma criancinha embora me tratem como o tal, já sou bem grandinho embora muito me esqueça dos nomes das ruas, das ruas, das que me levam a outros lugares e as que me levam à outras ruas, caminho ou linha de raciocínio este que vai de encontro com o único e mais despudoradamente notável encargo de um velho que é recordar. 

Relato de algum velho por ai, mas só daqui há algumas décadas. 

Giuliano de Oliveira Mangueira.