É porque sim, a peripécia
noturna, veste do inconsciente, o que nos deixa tricotar fábulas inéditas numa
ficção nossa de cada noite. Estirar-se num colchão duro feito pão dormido e
acordar sobre nuvens que se fazem ser notadas com o mesmo arbítrio que recorrem
para não ser sentidas. É o estofado dos anjos ou tapete de Deus?
E então eu sou gaivota. Não.. Mais! Porque não basta uma. Sou a consciência-mãe-piloto entrajada de motor nas
asas desse modesto bando de pássaros integrando ao que mais parece uma quadriga
romana destinada a cortar o frontispício do mundo.
Esquivando-se dos bandos fofoqueiros:
disseram pro urubu que a gente é carniça e que o falcão se acha caça
supersônico estadunidense. Minha vó diria que língua não tem osso mesmo... Calma
pessoal! O céu não é uma vidraça e não estamos de passagem, tampouco viagem que
se diz migração. Afinal esse vazio azul é um só e todos temos por direito uma
fração cerúlea. Sem contar o horário... A tarde é morna porque o sol pede
descanso já que o verão foi longo. Culpado: o tempo que rebolava dando a
entender, mesmo em terreno temperado, que as três outras estações dançaram.
Gabando-se do apanágio
aerodinâmico mesmo que não nos pertencesse à supremacia legada aos outros seres
bem mais do alto que nós. Já os Galliformes morrem de inveja, mas ninguém tem
culpa se suas asas pra nada servem a não ser se bem temperadas num assado de
panela.
“Encarem as correntes de ar
como uma extensa avenida desenhada para eternizar-se vertical”. Um concelho
lacônico, porém tão bobo e simplista. Queríamos as curvas. Fazê-las para alguém
fotografar com lentes Zeiss. Então veio a primeira.
O linguarudo do falcão nos foi
útil falando demais. “Meu voo é perfeito graças às asas curtas”. E calou-se o
vento só por uns instantes enquanto nos concentrávamos em reter o seguimento
maior deixando assim só as pontinhas para que um por um penetrasse na perpendicularidade
dos ares ou no que, dependendo de nós, poderia ser só abismo, mas na pior das
hipóteses, impiedosa voragem. Velocidade! Se trezentos por hora são ostensividade e soberba para uma gaivota, biturbos de mil duzentas e sessenta e uma cilindradas
são enxurradas de desperdício para seres que nem sabem voar. Triunfo da
façanha! De volta ao cume e mais alguns metros acima para estender as asas e
entender as dimensões, só então, comparar outros seres e outras coisas a grãos
do que quer que seja. Acusar também, a esfera terrestre de ser uma gaiola
grande demais para salvaguardar a pequenez do humano que se recolhe em seu
antro de ganancia e ambições fúteis encolhendo o produto da inteligência
divina. Ou extraordinário acaso. Portanto, gaiola paradoxal.
E na contramão do voo nosso
vem à gravidade. Não que nos impeça de voar, nem se quer precisamos manter os
pés no chão, mas não nos concede a perpetuidade do voo. Se bem que, parece
faltar pincel ou tinta para continuar pintando o sonho. Não, a verdade está na
memória. Cochicha ranzinza que não irá guardar nada dessa aventura pra depois
mesmo e se põe a tergiversar as crias da madrugada. Por onde estão as outras
gaivotas? São operários subalternos aos criados dos neurônios. Melhor,
figurantes para noite próxima. Podem, quem sabe, noutrora vestir-se de pelicanos ou albatrozes.
Calma... Acorde, vá no café
com pão, mastigue as tarefas diárias e troque a almofada, insufle-se do ar
fresco do parque às cinco, tome três chopes antes das dez e depois voe,
caminhe, corra, andeje, flutue, deslize à caminho de casa e venha pairar aqui
nessa cama.