Não se chega a melhor idade por
acaso. Nem devagar nem de pressa, ainda que carregue comigo a convicção que fidúcia
e insuspeitadamente sustentava meu avô de que tempo não passa tempo voa. Para
se chegar a este ponto carregado de tantos outros pontos que tiveram lá a sua
chance de serem os finais, o senhor deus dos homens e das circunstancias nos
contempla com um aparelho mnemônico e o que dar a entender é que cabe ao velho
uma única incumbência: recordar. Os amigos já não perguntam se estou bem, e sim
se lembro dos dias em que estive melhor. Não que me seja penoso este dever, mas
é que no desalinho do conglomerado de memórias correm enlaçadas devido à má
administração e falta de logística dos neurônios as boas e as ruins, aquelas
que ansiamos exonerar e as que sonhamos reviver, viver mais uma vez ou duas,
viver de novo, qual expressão melhor se adéqua a contemporaneidade de vocês? Acordo
cedo, mais precisamente às quatro da manhã. Nos anos mais distantes destes quando
servia o exercito passava o resto do dia com a cara mais tinhosa que se pode
imaginar porque tão cedo quanto hoje eu deveria estar de pé, e por falar em
exercito e graças à bagagem de traquejos que carrego posso lhes afirmar que o
reproche da ditadura não chegou nem perto do domínio tétrico de meu pai sobre
mim e meus irmãos, sem falar que tinha lá nosso patriarca motivos genuínos e
não precisou de amigo americano para lhe ensinar a nos educar. Quando criança
recebia vez antes da vida outra depois da morte visitas dos amigos médicos de
meu pai, mas eu era menino sadio e uma febrezinha era o que de mais riscoso me
atingia. Agora são amigos meus tais outros médicos dada à regularidade com que vou visitá-los. Parem de reclamar dos aclames que faço ao passado! Se querem se
ver livres da minha ladainha tomem como exemplo Alá que extirpava dos
loucos o juízo para que não pecassem e arranquem de mim as lembranças para que
eu não as reprise... Já não me permitem nem recorrer as minhas doses diárias do
saudoso Chivas dezoito anos e isso me traz a imagem das gerações de beberrões
das quais grande maioria fui assíduo comparte. Quando garoto vi em meus tios a
representação da prole dos que bebiam porque simplesmente gostavam, o tempo
passou e vieram os que bebiam pela compensação psicoativa do álcool para suas
mentes carregadas de perturbações e contratempos. E estes foram sucedidos pelos
que se embriagam em nome da bandeira da virilidade, o tal orgulho hétero que
cai bem melhor dito altivez da imbecilidade. Já não sou uma criancinha embora
me tratem como o tal, já sou bem grandinho embora muito me esqueça dos nomes
das ruas, das ruas, das que me levam a outros lugares e as que me levam à outras ruas, caminho ou linha de raciocínio este que vai de encontro com o
único e mais despudoradamente notável encargo de um velho que é recordar.
Relato de algum velho por ai, mas só daqui há algumas décadas.
Giuliano de Oliveira Mangueira.