10 setembro, 2015

Aparelho mnemônico


Não se chega a melhor idade por acaso. Nem devagar nem de pressa, ainda que carregue comigo a convicção que fidúcia e insuspeitadamente sustentava meu avô de que tempo não passa tempo voa. Para se chegar a este ponto carregado de tantos outros pontos que tiveram lá a sua chance de serem os finais, o senhor deus dos homens e das circunstancias nos contempla com um aparelho mnemônico e o que dar a entender é que cabe ao velho uma única incumbência: recordar. Os amigos já não perguntam se estou bem, e sim se lembro dos dias em que estive melhor. Não que me seja penoso este dever, mas é que no desalinho do conglomerado de memórias correm enlaçadas devido à má administração e falta de logística dos neurônios as boas e as ruins, aquelas que ansiamos exonerar e as que sonhamos reviver, viver mais uma vez ou duas, viver de novo, qual expressão melhor se adéqua a contemporaneidade de vocês? Acordo cedo, mais precisamente às quatro da manhã. Nos anos mais distantes destes quando servia o exercito passava o resto do dia com a cara mais tinhosa que se pode imaginar porque tão cedo quanto hoje eu deveria estar de pé, e por falar em exercito e graças à bagagem de traquejos que carrego posso lhes afirmar que o reproche da ditadura não chegou nem perto do domínio tétrico de meu pai sobre mim e meus irmãos, sem falar que tinha lá nosso patriarca motivos genuínos e não precisou de amigo americano para lhe ensinar a nos educar. Quando criança recebia vez antes da vida outra depois da morte visitas dos amigos médicos de meu pai, mas eu era menino sadio e uma febrezinha era o que de mais riscoso me atingia. Agora são amigos meus tais outros médicos dada à regularidade com que vou visitá-los. Parem de reclamar dos aclames que faço ao passado! Se querem se ver livres da minha ladainha tomem como exemplo Alá que extirpava dos loucos o juízo para que não pecassem e arranquem de mim as lembranças para que eu não as reprise... Já não me permitem nem recorrer as minhas doses diárias do saudoso Chivas dezoito anos e isso me traz a imagem das gerações de beberrões das quais grande maioria fui assíduo comparte. Quando garoto vi em meus tios a representação da prole dos que bebiam porque simplesmente gostavam, o tempo passou e vieram os que bebiam pela compensação psicoativa do álcool para suas mentes carregadas de perturbações e contratempos. E estes foram sucedidos pelos que se embriagam em nome da bandeira da virilidade, o tal orgulho hétero que cai bem melhor dito altivez da imbecilidade. Já não sou uma criancinha embora me tratem como o tal, já sou bem grandinho embora muito me esqueça dos nomes das ruas, das ruas, das que me levam a outros lugares e as que me levam à outras ruas, caminho ou linha de raciocínio este que vai de encontro com o único e mais despudoradamente notável encargo de um velho que é recordar. 

Relato de algum velho por ai, mas só daqui há algumas décadas. 

Giuliano de Oliveira Mangueira.