Lupe, membro solene da família Bom-Tempo é
diagnosticado tarde demais com um mal irreversível e os veterinários recomendam
a eutanásia. Todos os parentes, os quais pelo cão tem grande apreço se dividem
entre aqueles que são a favor e os que são contra a crucificação.
Mesa redonda, argumentos na ponta da
língua, cartas na manga, muito chororô e até os que são a favor lá no fundo de
suas almas são contra. Tia Cecília, a mais religiosa, relembra a todos da
crucificação de cristo e o quanto que sofreu na cruz por nós pecadores, mas
nada argumenta sobre a situação do animal porque “Não vou nem me meter, mas sendo
contra o aborto, também sou contra toda e qualquer ação que tenha o objetivo de
retirar a vida de alguém”. Enquanto isso as crianças se afogam em lágrimas, os
adolescentes principalmente. George o primo mais velho, por exemplo, menciona
que foi basicamente, e por culpa da mãe, criado pelo cachorro, “quantas vezes
eu não cai do berço graças ao Lupe, e quantas vezes me fez companhia enquanto a
mãe não estava. Ele não merece tanto sofrimento, sou a favor...”. Os homens da
casa, sisudos, padecem por dentro, mas não falam muito porque fingem refletir a
procura de uma solução. Seu Rogério, o avô, recorda que por 16 anos a casa foi
como uma fortaleza graças à coragem e astúcia do pastor alemão, “ladrão tem a
planta inteirinha do céu, mas dessa casa aqui até hoje só viu a faixada. Não sei
nem o que dizer e acho melhor nem saber de nada porque assim nada eu digo...
Vou é preparar uma boa dose de whisky!”. Adele, a cadela que deu a Lupe seis
filhotes e muito trabalho a quem teve que cuidar, foi trazida pelo dono e no
canto da casa se escorou. Não queria ver o cachorro da sua vida naquele estado.
Apesar disso não uivou e só duas latidas deu. Segundo Marta, a caçula da
família e tradutora de cães, Adele preferia que fosse o animal poupado da dor, “um
de nós teria que ir primeiro mesmo...”.
A Lupe incomodava mais aquela comoção geral
e todo o lengalenga pra decidir que rumo tomaria sua vida que as agonias e
torturas causadas pela doença. Não era um cão lá muito sentimental e inclusive,
certa vez a Adele, confessou desejar ser cremado. Marta nunca ficou sabendo,
logo, a família também desconhecia tal escolha.
Os veterinários estavam agoniados. Era
sexta feira, e um deles já estava atrasado para o happy hour com os amigos. Percebendo o cão, o incomodo que causava
começou a relembrar os tempos em que era treinado por seu Rogério. A
brincadeira que mais gostava era a de se fingir de morto, pois a recompensa era
a maior. Dois biscoitos de maisena. Fez
um esforço pra atiçar a memória do paladar, fechou os olhos e simulando a morte
esperou-a chegar.