04 julho, 2016

Sacrifício

Lupe, membro solene da família Bom-Tempo é diagnosticado tarde demais com um mal irreversível e os veterinários recomendam a eutanásia. Todos os parentes, os quais pelo cão tem grande apreço se dividem entre aqueles que são a favor e os que são contra a crucificação.

Mesa redonda, argumentos na ponta da língua, cartas na manga, muito chororô e até os que são a favor lá no fundo de suas almas são contra. Tia Cecília, a mais religiosa, relembra a todos da crucificação de cristo e o quanto que sofreu na cruz por nós pecadores, mas nada argumenta sobre a situação do animal porque “Não vou nem me meter, mas sendo contra o aborto, também sou contra toda e qualquer ação que tenha o objetivo de retirar a vida de alguém”. Enquanto isso as crianças se afogam em lágrimas, os adolescentes principalmente. George o primo mais velho, por exemplo, menciona que foi basicamente, e por culpa da mãe, criado pelo cachorro, “quantas vezes eu não cai do berço graças ao Lupe, e quantas vezes me fez companhia enquanto a mãe não estava. Ele não merece tanto sofrimento, sou a favor...”. Os homens da casa, sisudos, padecem por dentro, mas não falam muito porque fingem refletir a procura de uma solução. Seu Rogério, o avô, recorda que por 16 anos a casa foi como uma fortaleza graças à coragem e astúcia do pastor alemão, “ladrão tem a planta inteirinha do céu, mas dessa casa aqui até hoje só viu a faixada. Não sei nem o que dizer e acho melhor nem saber de nada porque assim nada eu digo... Vou é preparar uma boa dose de whisky!”. Adele, a cadela que deu a Lupe seis filhotes e muito trabalho a quem teve que cuidar, foi trazida pelo dono e no canto da casa se escorou. Não queria ver o cachorro da sua vida naquele estado. Apesar disso não uivou e só duas latidas deu. Segundo Marta, a caçula da família e tradutora de cães, Adele preferia que fosse o animal poupado da dor, “um de nós teria que ir primeiro mesmo...”.

A Lupe incomodava mais aquela comoção geral e todo o lengalenga pra decidir que rumo tomaria sua vida que as agonias e torturas causadas pela doença. Não era um cão lá muito sentimental e inclusive, certa vez a Adele, confessou desejar ser cremado. Marta nunca ficou sabendo, logo, a família também desconhecia tal escolha.

Os veterinários estavam agoniados. Era sexta feira, e um deles já estava atrasado para o happy hour com os amigos. Percebendo o cão, o incomodo que causava começou a relembrar os tempos em que era treinado por seu Rogério. A brincadeira que mais gostava era a de se fingir de morto, pois a recompensa era a maior. Dois biscoitos de maisena.  Fez um esforço pra atiçar a memória do paladar, fechou os olhos e simulando a morte esperou-a chegar.